Quando eu caí e ouvi o CREC, pressenti que algo não estava bem. Fiquei imóvel, os esquis ainda nos meus pés, os olhos fechados e contraídos de dor. De longe, escutei meu marido perguntando se eu estava bem. Dessa vez, olhei para ele e fiz com a cabeça um gesto de não. Mal conseguia falar.
Eu já tinha caído outras vezes. Em grande parte delas, gargalhei. Mas, dessa vez não foi assim. Fiquei parada, inerte, o CREC soando na minha cabeça como um flash descontrolado que não pára de piscar.
O instrutor se aproximou, tirou os meus esquis e eu pude respirar melhor. Me encolhi sobre o joelho dolorido, engoli o choro. Senti calor, vontade de vomitar. Tirei as luvas, toquei a neve. O frio bateu forte e me chacoalhou. Consegui me sentar, olhar ao redor, tentar entender o que tinha acontecido. Coloquei um pouco de neve sobre a perna numa tentativa de improvisar uma compressa de gelo. Meu marido, um pouco mais à frente, me olhava tentando entender.
“Você pode continuar, está tudo bem,” falei sem muita convicção. “Daqui a pouco alcanço vocês.”
No início, eu pensei em continuar. Eu quis ser forte, não me abalar. Mas achei prudente voltar e me aconchegar no calor da fogueira acesa na sede da estação.
A volta foi penosa. Dor forte, botas desconfortáveis, esquis pesados. Ninguém ao redor para ajudar. Ao longe, avistei meus filhos no local reservado para a aula das crianças. Baixei a cabeça e olhei para o outro lado, tentando disfarçar minha presença. Eu não queria que eles me vissem fragilizada e com dor.
Quando, finalmente cheguei à sede e consegui me sentar, não pude evitar as lágrimas que brotaram em meu rosto e que refletiam a angústia dentro de mim. “Como é que eu vou fazer? Quem vai levá-los para escola, quem vai buscar? E a casa, a cozinha, o supermercado, as roupas, o ballet, a natação, a ginástica? Como é que eu vou cuidar de tudo isso com um joelho machucado?”
Não sei quanto tempo passei chorando, ali, observando o vai e vem de gente entrando e saindo da pista. Invejei a oportunidade deles de poder recomeçar. Desejei voltar no tempo para poder fazer diferente e evitar a queda. “E se eu tivesse escolhido o outro lado? E se eu tivesse virado para direita e não para esquerda?”.
Quando tentei me levantar, meu joelho falhou. Olhei para o lado sem saber o que fazer. As pessoas passavam sem me olhar. A paisagem era bonita demais para alguém se preocupar com uma turista acidentada. Acenei para um homem de uniforme e ele chamou ajuda. A paramédica, com ar maternal, tentou me acalmar: “Não chore, vai ficar tudo bem.”
“Não são lágrimas de dor,” tentei explicar. “Tenho dois filhos para cuidar, alimentar, levar e buscar na escola. Como é que eu vou fazer? Não tenho família aqui, faço tudo a pé, como vai ser?”.
“Você está com muita dor?”, me perguntou o médico na mesa de exames, sensibilizado frente às minhas lágrimas.
“Não. Só não consigo parar de chorar”.
***
Ao me encontrarem no posto médico com a perna imobilizada e o nariz vermelho, a carinha de meus filhos foi de espanto. Sem que eles precisassem dizer, pude ler as interrogações que povoavam suas pequenas cabecinhas: “Mas a mamãe também se machuca?”. E desde então, seu olhar para mim parece diferente. Um misto de espanto, curiosidade e decepção. A mamãe se machucou…
Filhos, eu demorei demais para entender que pais e mães se machucam. Pais e mães nem sempre sabem. Pais e mães erram em grande parte das vezes. Pais e mães não estarão aqui para sempre para cuidar de vocês. Quando olhei para seus olhinhos inquietos e temerosos ao me ver no médico naquele dia, pude ver que algo se quebrou. Não dentro de mim, do meu joelho, como eu temia. Mas dentro de vocês. Ai dentro desse lugar que, por falta de outra palavra melhor, chamamos de coração. Foi aí que algo se quebrou. A chama da infalibilidade se apagou.
Sei que não é bom que essa chama permaneça por muito tempo. Pelo menos, desejo que ela se apague em vocês bem antes do que ela se apagou em mim. É saudável, é real. Quanto antes vocês conseguirem ver seus pais em suas roupas de humanos, melhor será a vida de vocês. Mais fácil será aceitar seus erros e os dos outros. E mais fácil será perdoar, seja lá quem, pelo que for.
Mas confesso que não estava preparada ainda para ver esse olhar tão cedo nos seus pequenos e inocentes rostinhos de criança. Esse olhar de alívio e decepção. De libertação e apreensão. “Como ela vai me proteger se ela também pode se machucar?”
***
O diagnóstico saiu dois dias depois. Nada grave. Recomendação médica? Repouso. Andar o mínimo possível.
Com a ajuda de meu marido e algumas amigas, a rotina das crianças se alterou pouco. Mas foi engraçado observar o quanto eles estranharam a mãe mais quieta, em repouso forçado. Um dia, ao chegar da escola, meu filho de 4 anos não parava de entrar e sair do meu quarto, como se quisesse checar, a todo momento, como é que eu estava. Se eu ainda estava ali, se estava inteira, se eu continuava sendo sua mãe, mesmo andando com esse jeito torto e desengonçado que ele nunca viu.
Em dado momento, olhou para minha perna com uma cara estranha e me perguntou: “Cadê o sangue, mamãe?”
“Não tem sangue, filho. Mamãe se machucou por dentro. Mamãe vai sarar logo, não se preocupe,” respondi em tom apaziguador.
Ele me olhou e franziu a testa como se não tivesse entendendo muito bem. Beijou minha tala e saiu correndo em direção ao seu mundo de criança, me deixando sozinha no meu mundo de adulto onde as feridas que não sangram são capazes de doer ainda mais…
* Isabel Coutinho é psicóloga, mãe de 2 filhos e autora do livro MÃE EM CONSTRUÇÃO – reflexões, angústias, desafios (Dash Editora), à venda nas principais livrarias e na loja Somos Mães de Primeira Viagem.
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