Perfeição, caos e maternidade

A movimentação na noite anterior já era um prenúncio do que viria pela frente. Aulas suspensas na escola. Recomendação para todos ficarem em casa. A previsão era de uma grande tempestade de neve. A nossa primeira, desde que nos mudamos. Como uma criança, dormi com um misto de excitamento e apreensão diante da expectativa desse fenômeno tão novo para mim. Fiquei imaginando a beleza do dia seguinte, tudo branco e lindo, como uma cena de filme.

 

De fato, quando despertei, já estava tudo branco lá fora e a neve caindo formava um espetáculo bonito de se ver. Os flocos dançando em ritmo apressado, ao som do vento que chacoalhava as janelas, ainda que vedadas e fechadas por causa do frio. Um convite ao aconchego e à quietude.

 

Animada com a perspectiva de um dia livre de obrigações, me programei: tomar café da manhã sem pressa, assistir filmes com as crianças, liberar as guloseimas – afinal de contas é um fim de semana no meio da semana – tirar uma soneca debaixo de um grande cobertor. E, claro, quando a tempestade se acalmar, sair para brincar na neve. Ahhhhhh, um dia perfeito. Se não fosse pelo fato de que, às onze da manhã eu já havia esgotado todas as minhas possibilidades de entretenimento e as crianças já estavam entediadas, inquietas, correndo pela casa e eu já me sentia exausta como se fossem seis horas da tarde!

 

Mudei os planos do meu dia perfeito e decidi sair com eles, apesar da neve intensa ainda caindo. Iniciei o penoso processo de arrumar duas crianças para sair durante um dia de inverno. Levar ao banheiro, escovar os dentes, vestir a roupa de frio, colocar dois casacos, luvas – “Onde estão as luvas?” – colocar cachecol e botas de borracha. Demorei quase meia hora para conseguir fazer tudo e sair. Já lá fora, me dei conta de que, no meio da confusão, esqueci de limpar o nariz das crianças. Eles mal tinham saído de casa e já estavam remelentos. “Nós não vamos te poupar,” os catarros esverdeados pareciam gritar, saindo provocadores das narinas dos dois. Os lenços – que eu até lembrei de comprar no dia anterior – ficaram no bolso do outro casaco, claro!

 

Meia hora foi tempo suficiente para meus dois filhos ficarem ensopados e com frio, pedindo para voltar para casa.

 

Voltei para casa, dei almoço, banho, vi filme, fiz pipoca, levei para mais um passeio pela neve, dei outro banho. Em vez de cozinhar, pedi uma pizza (não tive forças para enfrentar o fogão) e, após o jantar, finalmente as crianças se aquietaram vendo um pouco de TV. Quando meu marido chegou, estava tão cansada que só pedi para que ele ficasse com as crianças e fui deitar. Dormi até a manhã do outro dia.

 

O sol acordou brilhando no dia seguinte e a rotina voltou ao normal. Levei as crianças na escola, mas demorei o dobro do tempo costumeiro para realizar o percurso de ida e volta. Em parte, por causa do meu joelho machucado. A outra, pela condição das ruas: neve acumulada, calçadas escorregadias, pistas lamacentas. Foi impressionante notar como a beleza da cidade toda nevada do dia anterior se transformou em sujeira e caos. Restou pouco da neve branca e fofa. Ela se transformou em uma gosma marrom, pisoteada e mesclada de pontos amarelos, graças aos cachorros que passaram apertados por ali.

 

Caminhando com dificuldade pelas ruas escorregadias, pensei na maternidade e no grande contraste que existe entre o que imaginamos sobre ela e o que, de fato, ela nos apresenta todos os dias. Certamente ela tem um lado lindo, como a neve que cai deixando tudo branquinho e enchendo a cabeça de planos para um dia sem escola e sem obrigações. Mas também tem seu lado imprevisível – que faz cair por terra nossos devaneios – e assustador – como a neve que vira lama, trazendo insegurança e caos. Deixando o caminho mais escorregadio, exigindo sapatos que não estávamos acostumadas a usar. Onde é preciso ter muito mais calma, cuidado, paciência e estar disposta a corrigir as rotas que antes gostávamos de caminhar.

 

Por sorte, toda a confusão durante e após a nevasca, não roubou em nada sua beleza e grandiosidade. Só me fez refletir sobre a importância de que esse outro lado difícil e imprevisível da maternidade não seja ignorado por nós, mas abraçado como algo intrínseco a tudo aquilo que envolve o nascimento, o cuidado e o crescimento de um outro ser. Algo bom de se lembrar em tempos onde a vida é mostrada através de fotos perfeitas que parecem ignorar as dificuldades do caminho, deixando-nos com uma sensação desconfortável de estarmos sozinhas enfrentando o grande paradoxo que é viver cuidando de outro alguém. 

 

* Isabel Coutinho é psicóloga, mãe de 2 filhos e autora do livro MÃE EM CONSTRUÇÃO – reflexões, angústias, desafios (Dash Editora), à venda nas principais livrarias e na loja Somos Mães de Primeira Viagem. Isabel mora atualmente em Nova Iorque.
 

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A Somos Mães é uma ONG e uma empresa do setor 2,5 que nasceu em agosto de 2014. Com o objetivo de informar e acolher, produz conteúdo que impacta diariamente mais de 300 mil pessoas. Tem dois projetos incentivados pela Lei Rouanet.

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