A violência obstétrica e seus aspectos jurídicos

Recentemente o termo “violência obstétrica” veio à tona no âmbito das discussões sociais, por causa da nova orientação do Ministério da Saúde – constante de seu despacho DAPES/SAS/MS do último dia 03 de maio – que registra seu posicionamento oficial no sentido de que este termo “tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério”.

 

No mesmo despacho, aponta que “estratégias têm sido fortalecidas para que o cuidado materno seja cada vez mais qualificado, principalmente no que se refere à diminuição da mortalidade materna, mortalidade infantil, prevenção de danos decorrentes de intervenções necessárias para a preservação da vida do binômio mãe-bebê e na relação de cuidado e afetiva mãe-filho”, razão pela qual entende que o uso deste termo se mostraria inadequado no atendimento à mulher, visto que, no seu entender, não haveria intenção do profissional de saúde ou de outras áreas em prejudicar ou causar dano a gestantes.

 

A definição de violência obstétrica é expressa pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como sendo a “apropriação do corpo da mulher e dos processos reprodutivos por profissionais de saúde, na forma de um tratamento desumanizado, medicação abusiva ou patologização dos processos naturais, reduzindo a autonomia da paciente e a capacidade de tomar suas próprias decisões livremente sobre seu corpo e sua sexualidade, o que tem consequências negativas em sua qualidade de vida.”

 

Independentemente de eventuais discussões éticas ou de contexto sociológico sobre esta decisão do Ministério da Saúde – e já aqui poderíamos notar diversas impropriedades deste órgão quanto aos termos do Despacho -, sob a luz estrita do Direito esta medida não afeta as obrigações dos profissionais envolvidos na gestação nem diminui os direitos da gestante a ter uma gravidez e parto sadios tanto para a mãe quanto para o bebê.

 

Isto porque, no que diz respeito a gestantes atendidas por hospitais e profissionais da rede particular de atendimento, estas encontram-se protegidas por todos os parâmetros do Código de Defesa do Consumidor, que impõe a todos os profissionais envolvidos o dever de fornecer serviços de qualidade e que não venham a colocar o consumidor – no caso, a gestante e até mesmo a criança por nascer (esta última, por aplicação do artigo 17 do CDC).

 

Por sua vez, os profissionais da rede pública de saúde também são obrigados a adotar procedimentos seguros para a gestante, nos termos da Portaria nº 1.820/2009 do mesmo Ministério da Saúde. Por meio desta norma, as ações e serviços de saúde deverão prestar tratamento adequado, no tempo certo e com garantia de continuidade de tratamento, elencando em seu artigo 3º uma série de procedimentos que deverão ser prestados aos usuários do Sistema Único de Saúde.

É importante frisar que, tanto para a rede pública quanto para a particular, são aplicados, além dos aspectos da responsabilidade civil referentes à indenização por danos causados, também os parâmetros da legislação penal deverão ser utilizados quando da constatação de  fatos que possam ser tipificados como crime, dentre os quais podemos citar, por exemplo, a injúria praticada por profissionais de saúde, lesões corporais causadas à gestante durante o trabalho de parto ou eventual dano à gestante causado por medicação receitada erroneamente.

 

Nota-se, assim, que a utilização (ou não) do termo “violência obstétrica” não acarreta nenhuma restrição de direitos à gestante (ou ao nascituro) quanto ao processo geracional em si.

 

Uma questão, entretanto, deve ser observada com cuidado, que é o enquadramento de partos cesarianos como violência obstétrica a partir do momento em que as pacientes são desnecessariamente induzidas à realização deste tipo de parto. A questão é bastante delicada na medida em que, segundo parte dos profissionais da área médica, há uma tênue (e às vezes imperceptível) linha entre a cesariana necessária (ou obrigatória) e a que poderia ter sido evitada caso a gestante tivesse a opção de aguardar mais um pouco para tentar o parto natural mais adiante.

 

Esta questão (específica da cesariana desnecessária) não possui um equacionamento definitivo, principalmente sob seu aspecto jurídico, dadas as nuances que permeiam o assunto. A este respeito, em nota recente o Ministério da Saúde respondeu que emitiu a orientação de não utilização do termo “violência obstétrica” para que ele não mais seja utilizado indiscriminadamente, “principalmente se associado a procedimentos técnicos indispensáveis para resolução urgente de situações críticas à vida do binômio mãe-bebê relacionados ao momento do parto”.

 

O problema reside justamente na difícil caracterização desta “resolução urgente de situações críticas” para a vida da gestante e de sua criança por nascer. Note-se, a respeito, que a Portaria nº 306/2016 do Ministério da Saúde traz uma série de diretrizes referentes à cesariana e traz diversas recomendações sobre as hipóteses de seu uso, mas ainda assim não indica claramente (talvez por serem direcionadas mais para os profissionais de saúde) quais as situações em que a cesárea deverá obrigatoriamente ocorrer.

 

Segundo o Dr. James Cadidé, da Comissão de Parto da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, só existem duas indicações absolutas de cesariana: a desproporção céfalo-pélvica e a apresentação prévia da placenta. Cumpre-nos, portanto, recomendar que o Ministério da Saúde formalize este entendimento em norma dirigida à sociedade em geral, bem como esclareça as demais hipóteses de cesária em linguagem simples e direta, o que certamente deixaria de lado discussões quanto à caracterização ou não da violência obstétrica.

 

Em suma, de fato a utilização do termo “violência obstétrica” não deve ser feita de forma indiscriminada, contudo ainda assim a sociedade deverá estar atenta a situações em que ela pode ocorrer, gerando com isto efeitos nas esferas civil, penal e/ou (conforme o caso) administrativa. Conclui-se, assim, que a recomendação do Ministério da Saúde não tem o condão de afastar a aplicação do conceito de violência obstétrica em situações onde ela pode ocorrer, cabendo às famílias atentar para as normas mencionadas acima e seguir cuidado da saúde da gestante e do bebê para que se evite a ocorrência deste tipo de violência. 

 
 
Roberto Cavalcante Lima Fabricio
Advogado e consultor em planejamento estratégico em São Paulo, pós-graduado em Direito Internacional pela PUC-SP e em Direito Ambiental pela UEA-AM. É especialista assistente da Convenção Quadro para Mudanças Climáticas das Nações Unidas (FCCC-UN), membro da World Future Society e vice-presidente da ONG Caminho de Mãe.

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