Dois adultos em fantasias de pelúcia distraiam minha atenção na hora da saída da escola. Meu filho estava ao meu lado, com um saquinho de balas na mão, decidindo qual delas comeria.
“Só pode comer uma, filho”, insisti já temerosa pela quantidade de doces que ele iria ingerir depois de um dia cheio de gostosuras ou travessuras.
Minha atenção foi bruscamente desviada da carinha feliz daquela criança olhando para aqueles personagens fantasiados – provavelmente seus avós fazendo uma surpresa de Halloween – quando ouvi o barulho de uma batida de carro. Virei meu rosto em direção ao estrondo e presenciei um ônibus escolar passar descontrolado em direção a rua vizinha a escola. Minha primeira reação foi pegar o telefone e discar o internacionalmente conhecido número da ajuda: 911. Ainda com o telefone nas mãos, fui surpreendida por uma correria no pátio da escola e o chamado para que todos corressem para dentro. Sem entender muito bem o que estava acontecendo, me pus também a correr, de mãos dadas com meu filho mais novo. Quando me dei conta, estávamos nós dois juntos, abaixados no chão da escola, quietos, em posição de emergência. Eu o abracei forte, enquanto tentava ainda falar baixinho ao telefone explicando para o moço do outro lado da linha sobre o acidente que eu havia acabado de presenciar.
Mas o que será que ele vai lembrar de tudo isso?
Essa é a pergunta que tem ecoado dentro de mim vários dias depois do ocorrido, já sabendo que, na verdade, o acidente que presenciei não foi um acontecimento corriqueiro, mas sim uma ação premeditada que fez o bairro pacato onde moro ficar, por dias, com ruas interditadas e com policiamento reforçado.
Na minha memória ficaram alguns fatos isolados que, apesar de terem acontecido em questão de segundos, reaparecem frequentemente diante de mim como um filme em câmera lenta. É curioso também como alguns detalhes bobos ficaram arquivados e me voltam nas lembranças sem muita explicação. Como o casal em fantasias de pelúcia que descrevi a pouco, o homem alto de costas que se aproximou da grade para ver o que estava acontecendo, a moça de rosto redondo gritando vermelha e empurrando todos para dentro da escola: corre, corre!!!
Mas de todas as imagens que presenciei naquele dia, apenas uma única ainda não me saiu da cabeça: a da mãozinha do meu filho mais novo, segurando forte sua preciosa caixinha de bala, a mesma bala que, segundos antes, ele tinha escolhido para ser a única daquela tarde. Durante todo o tempo que permanecemos juntos, quietos e abraçados até que tudo se esclarecesse, a balinha permaneceu ali, em sua pequena mãozinha, intocada, segura, já amassada pela força que ele fazia para não deixá-la cair.
Em dado momento, insisti para que ele comesse a bala, na esperança que um pouco de açúcar ajudasse a distrair sua atenção. Mas ele foi firme, incisivo:
“Não mamãe, agora eu não quero”, dizendo, sem na verdade dizer, que, naquele momento, as balas e os doces não tinham a menor razão de ser…
***
Os fatos que descrevi acima aconteceram no último dia 31 de outubro, aqui na cidade de Nova Iorque nos Estados Unidos, onde vivo há pouco mais de um ano. No dia que é celebrado o Halloween (ou Dia das Bruxas), um rapaz, dirigindo uma caminhoneta alugada, atropelou e matou várias pessoas na esquina da escola onde meus filhos estudam. Após chocar-se com um ônibus escolar, o rapaz abandonou o veículo portando duas armas de brinquedo mas logo foi baleado pela polícia e não machucou mais ninguém.
Na hora que tudo aconteceu, o pátio da escola – ainda cheio de pais e alunos – foi, imediatamente, evacuado. Todos correram em direção às portas, buscando refúgio dentro de prédio e permaneceram por várias horas dentro da escola até que a polícia considerasse seguro que todos saíssem e voltassem para suas casas.
Nos dias subseqüentes ao acontecido, a escola e os pais mais engajados promoveram uma série de discussões e reuniões para que todos pudessem falar e discutir sobre o que tinham visto e presenciado naquele dia. Esses encontros foram de grande ajuda para mim e reforçaram minha crença de que compartilhar uma vivência com outras pessoas contribui sempre muito positivamente no processo de elaboração.
Nessas reuniões, no entanto, uma coisa me deixou muito incomodada: a preocupação frenética dos pais em discutir formas de aumentar a segurança da escola como, se isso, fosse capaz de assegurar que, daqui para frente, nada mais iria acontecer.
Apesar de entender e compartilhar da apreensão destes pais – de fato acredito que há coisas que podem (e devem) ser feitas para melhorar a segurança da vizinhança e da escola – fiquei um tanto perturbada com o excesso que notei (em mim e em outros pais) na busca de evitar, a qualquer custo, que os filhos entrassem em contato com qualquer tipo de experiência extrema. Escutei inúmeras vezes que “dinheiro não seria o problema” e que todos iriam generosamente contribuir para que itens de segurança fossem instalados na escola.
Foi um tanto constrangedor ver todos tão frágeis e tão apegados à ilusão de que, de fato, é possível evitar que algumas coisas aconteçam. Foi difícil encarar de forma tão escancarada a dificuldade coletiva em lidar com o imponderável e o incontrolável da vida; em aceitar a impotência humana e a falta de controle sobre o que acontece com quem se ama.
E foi nesse momento, quando me dei conta dessa profusão de sentimentos e do apego exagerado a uma falsa sensação de segurança, que entendi a razão de não ter conseguido escrever nada sobre o ocorrido até aquele dado momento (me perguntei por dias o porquê não estava conseguindo escrever sobre o acontecido, logo eu que preciso tanto das palavras, qual a razão delas estarem me faltando?). E descobri não queria escrever para não escancarar a vergonha que eu estava sentindo frente a minha alienação diante realidade do mundo que vivo atualmente. E escrever sobre isso só aumentaria essa sensação. Por que minha experiência seria maior, mais importante ou mais assustadora do que aquilo que tantas outras famílias enfrentam nas favelas e periferias do meu país e em tantos outros cantos do mundo devastados pela guerra e violência? Por acaso meus filhos seriam diferentes dessas outras crianças que vivem uma vida de terror e ameaça constante?
A partir de então, confesso que não consegui mais deixar de pensar nos pais das crianças que não podem desfrutar da ilusão de manter os filhos protegidos nem dentro da própria casa. Cujos filhos encontram homens armados e convivem com o perigo de balas perdidas todos os dias de suas vidas. Ainda não consegui deixar de sentir vergonha pelo meu egoísmo e limitação, pela minha dificuldade de enxergar além da minha tacanha realidade. E tampouco consegui pensar no que fazer para transformar essa vivência em uma lição de vida, que reflita, num futuro não tão distante, numa busca de caminhos e ideais que contribuam para um mundo mais humano e igualitário.
Já quanto à pergunta que não saia da minha cabeça – “Mas o que será que meu filho vai lembrar de tudo isso?”, posso afirmar, com segurança, que é a única que eu tenho a resposta: eu nunca vou saber.
Mas confesso que, se eu pudesse escolher, gostaria que as memórias do meu filho sobre esse dia viessem acompanhadas de um sabor amargo e indigesto em sua boca – que nem a balinha mais doce de Halloween fora capaz de atenuar! – e da certeza de que, para algo mudar, há que se fazer muita coisa para além dos muros ou câmeras que podem ser colocados nos arredores da linda escola que ele tem o privilégio de freqüentar…